Artigo da Profa. Dra. *Soraya Soubhi Smaili, publicado na sexta-feira, 04 de agosto de 2013, na Folha de São Paulo, sobre a perseguição ao reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier, que, preso pela Polícia Federal de forma violenta, se suicidou em 02 de outubro de 2017, no auge das operações Lata Jato. Nascido em 13 de maio de 1957, em Tubarão (SC), Cancellier, como era conhecido, foi jurista, jornalista e professor universitário brasileiro.

*Soraya Smaili é Professora Titular do Departamento de Farmacologia da Escola Paulista de Medicina da UNIFESP. 

Abaixo, o artigo na íntegra: 

Cancellier, justiça e reparação

Meyrele Nascimento/SoU_Ciência

A busca por justiça e reparação em nome de Luiz Carlos Cancellier e de todos os dirigentes de universidades federais que foram vítimas de perseguição durante os governos Temer e Bolsonaro ganhou ainda mais força com a Carta de reitores e ex-reitores de universidades federais de todo o país enviada recentemente ao Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, reivindicando a devida atenção a um capítulo sombrio da história recente de nosso país, destacando a importância de resgatar a memória de Cancellier e exigindo justiça e reparação.

Desde a ditadura militar a autonomia universitária não tinha sido tão atacada quanto nos últimos anos de ascensão da extrema-direita na política depois do golpe parlamentar, jurídico e midiático contra a presidente Dilma Rousseff. As universidades públicas foram alvos preferenciais no neofascismo brasileiro.

A Carta, enviada também ao Ministro da Justiça Flávio Dino e ao Ministro da Educação Camilo Santana, reforça o compromisso dos pesquisadores e ex-reitores em buscar a justiça e a reparação. A Carta destaca o parecer de julho de 2023 do Tribunal de Contas da União (TCU) que não encontrou irregularidades na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) após uma denúncia obscura em 2017, mandando arquivar o processo. No entanto, as medidas arbitrárias tomadas pela Polícia Federal e pelo judiciário resultaram em perdas irreparáveis, incluindo a morte do reitor, causando indignação e clamor por justiça.

Em março, o Ministro Gilmar Mendes já havia indicado a suspeição da juíza do caso, Janaina Cassol, e observou que, na decisão da magistrada havia “excessos de linguagem” e “afirmações categóricas e imperativas” que concordavam com a tese do Ministério Público, o que caracterizava uma antecipação da sentença. Gilmar apontou que parte significativa da decisão assume de modo categórico a existência da “organização criminosa, de diversas condutas já declaradas ilícitas e a responsabilidade penal de diversos acusados”, o que, para ele, representa uma prévia da condenação. Com isso, ao reitor foi negado “o direito à devida investigação, munida das garantias constitucionais, a partir da presunção de inocência, do devido processo legal e ampla defesa sob mediação de julgador imparcial.”

A juíza do caso é investigada por outras ações envolvendo abuso de poder e reclamações disciplinares. Ela é cria do lava-jatismo e de seu modo de proceder punitivista e persecutório. Uma audácia padeceu de uma irremediável arrogância, um inegável abuso de autoridade, como se o fim justificasse todos os meios, até os mais duvidosos. À guisa de moralizadores da República, seus protagonistas trilharam um percurso marcado por abusos, desconsiderando princípios constitucionais básicos como a presunção de inocência e o devido processo legal. A Lava-Jato, nas palavras de seus idealizadores, seria a luz que conduziria o Brasil à probidade, mas sob esse manto de justiça incorruptível, a operação ocultou inúmeras ilegalidades. Operações midiáticas, vazamentos seletivos, conduções coercitivas desnecessárias e a colaboração promíscua entre juízes e promotores, pintaram um cenário distorcido onde a justiça parecia se confundir com espetáculo. A luta contra a corrupção é necessária, é claro, mas jamais deve servir de álibi para a barbárie jurídica e o atropelo das garantias individuais.

Recém-eleito, Bolsonaro, inspirado no caso da UFSC, anunciou a Lava-Jato da Educação, incluindo a investigação de repasses, subsídios e isenções fiscais que beneficiavam as instituições privadas. Estas logo se mobilizaram e enterraram a iniciativa. Basta lembrar que a irmã de Paulo Guedes era dirigente da Associação Nacional de Universidades Privadas, que representa os interesses de grandes monopólios educacionais. Mas a perseguição seletiva, como na operação original, se dirigiu unicamente aos reitores e gestores das universidades públicas, com ameaças diretas ou veladas, substituição de procuradores, blitz de auditorias, interferência nos processos eleitorais etc. Nesse caso o lava-jatismo esteve combinado com a guerra ideológica contra as universidades públicas, acusadas de todos os despropósitos pelos olavistas e pastores que ocuparam a cadeira do MEC.

O simples “arquivamento do caso” da UFSC pelo TCU não é suficiente. É essencial apurar as causas e responsabilizar os envolvidos, evitando que episódios similares ocorram no futuro. A história de Cancellier deve servir como um alerta para a importância de defender a autonomia e a integridade das universidades e de seus dirigentes e sistemas internos de controle.

Embora a reparação não possa trazer de volta a vida perdida de Luiz Carlos Cancellier, ela pode ser alcançada através da memória e da divulgação das injustiças sofridas por ele e por tantos outros dirigentes universitários. A criação de monumentos e memoriais que apresentem essas histórias ao público é fundamental para garantir que essas tragédias jamais sejam esquecidas.

Reforçamos a necessidade de apuração e responsabilização dos envolvidos em todos os casos de perseguição a reitores e reitoras de instituições federais. A sociedade deve reconhecer o papel vital das universidades durante a pandemia da Covid-19, demonstrando coragem e dedicação ao salvar vidas mesmo diante das adversidades impostas pelo governo Bolsonaro (ver o painel de ações das universidades em defesa da vida produzido pelo SoU_Ciência).

A busca por justiça e reparação é incansável, e o apoio de diversos pesquisadores e ex-reitores ratifica a relevância desse movimento. A memória de Luiz Carlos Cancellier e de todos os que sofreram com a perseguição injusta deve ser eternizada como um lembrete para as gerações futuras, reforçando a importância de defender a democracia, a liberdade e a integridade acadêmica.

Que ações efetivas sejam tomadas pelas autoridades para apurar os fatos e garantir a responsabilização dos responsáveis, trazendo alento às vítimas e suas famílias. Juntos, pesquisadores e ex-reitores, contribuiremos para a construção de um futuro mais justo e respeitoso com a educação e o conhecimento em nosso país. A busca por justiça é uma luta de todos nós, em prol de uma sociedade mais justa e democrática.

O artigo na íntegra está disponível, para assinantes da Folha de S. Paulo, no link em: Cancellier, justiça e reparação

 Assessoria de imprensa/CONFIES

 

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